Em torno de pássaros e manhãs

 

PintassilgoEscrevo na face da manhã, este canto de louvor ao pássaro e à manhã, tão pródiga, com seu implacável testemunho, em exibir a mutação das horas. O que, ainda há pouco, era úmida herança da madrugada, desfralda agora suas luzes e cores e é manhã, perfeitamente manhã, da forma que a desejo e percebo.

O que ainda há pouco era silêncio e lassidão, vai ganhando agora um ritmo novo, especialmente monocórdio, com o som de um ou outro automóvel, que vai marcando a rua, com sua presença. Ainda é outono. Um outono de folhas não caídas; de folhas verdes e úmidas, como úmidas e verdes, vão se cumprindo as horas, e são as esperanças.

Tenho exata consciência de que mais tarde, a pessoa do carteiro, tão ciosa de sua cotidiana e fraterna missão, vai personalizar esta manhã, com sua presença cordial, com a entrega de tantas mensagens pessoais, que encurtarão o caminho entre os homens.

Por agora, não. Esta manhã anuncia o retorno e exalta a liberdade, de tudo o que é vivo e se move, na harmonia do universo.  Para isso, escolhe um pequeno ser alado, meu amigo, que há tempos vem nos visitar, quando o dia mal está acordando. É um pequeno pintassilgo, alegre e cantante, que exibe sua beleza e sua pertinácia, ante meus olhos de curiosidade, contentamento e emoção.

Nos dois últimos meses, ele não veio. Pelo menos, não veio com a pontualidade de sempre, que acontecia às 06h30min, com a manhã ainda úmida de orvalho e mal despertada. Desse modo, não nos víamos há algum tempo. Mas esta manhã, desfazendo os longos dias de ausência, ele tornou a nos dar o ar da graça, compondo um espetáculo original e cativante, na janela do apartamento.

Por que é tão especial? Respondo, a mim mesmo, por que ele é único, para meu modo de senti-lo e compreendê-lo, na repetida e vã conduta que orquestra, talvez por vaidade e exibição; talvez por absoluta necessidade de auto proteger-se.

Ele chega ligeiro e logo estanca o vôo, pousando sobre a meia-grade de alumínio, do lado externo da janela. A janela é toda envidraçada, por onde a claridade denuncia a chegada da manhã. Ali ele fica, saltitando, movendo-se de um lado para o outro, como a mirar-se de perfil e de frente.

Estou na sala e o vejo, sentado à mesa, perpetrar seus passos e sua estratégia de ação instintiva. Como a grade é próxima do vidro, é possível para ele, desfraldar sua aventura, com muita determinação. E ele o faz, jogando-se contra o vidro e o bicando, como se lutasse com um adversário tenaz, só visível para seus olhos de pássaro.

Atira-se, com tanto vigor contra o vidro impassível, que escorrega até o parapeito, debatendo-se com o vento, para manter seu equilíbrio alado. Mas não se dá por vencido, e volta a pousar sobre a grade, para outra vez tentar; para outra vez lutar, quem sabe, defendendo seu território, sua liberdade, mostrando sua valentia.

Sempre que o vejo, me ponho a imaginar seu destino de pássaro; sua teimosa e valente liberdade; sua reafirmada determinação de auto proteger-se; seu canto de sibilos intermitentes. 

O que imagino é que ele, iluminado pelos raios da manhã, projeta sobre o vidro transparente, a sua própria imagem em sombras, que parece lhe ameaçar. Ameaçado, então, é bravo, na defesa de sua integridade, de seu território, de seu espaço vital.

Quando lhe abro a janela, convidando-o a entrar no apartamento, ele pára e desiste de lutar. Talvez já não veja sua imagem refletida; talvez sinta outra possível ameaça, não verdadeira, à sua liberdade.

Para onde ele vai, penso quando ele parte, após cumprir o ritual da manhã? Ele é quase como o carteiro, a distribuir alegrias, a partir como um condutor de mensagens, que fosse levar exemplo e reflexão às outras pessoas, perpetrando esse ou outro espetáculo de vida, aonde vai pelas manhãs.

O que o faz retornar, sempre à mesma hora, ao mesmo lugar, repetindo o mesmo ritual, como uma obrigação que tivesse a cumprir? Lá fora, na face exposta da manhã, os bem-te-vis vão fazendo o coro repetido, mas não ousam mirar-se no vidro da janela. Eles saúdam a manhã, ao seu modo, sem se dar conta dela. Apenas, o pequeno pintassilgo o faz, com sua bravura e sua ousadia.        

Que seja benvindo, então pequeno e alado mensageiro. Ensinas-nos a amar a liberdade, sob qualquer que seja a sua forma. Ensinas-nos a lutar, com bravura e tenacidade.

Mas nos ensinas, também, que nossos adversários, podem ser uma ilusão de nossos sentidos, consumindo nossas energias, como as de Dom Quixote de La Mancha. Amar a cidade é saber ver e ouvir as vozes da natureza. É preciso amar a cidade.

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