Uma coruja refletida e dentro da noite

 

 

coruja-2Ainda há pouco, piou dentro da noite uma coruja. Não pude vê-la, imersa na noite escura, na densa e suave noite que desce sobre a Rua das Andirobas, e vai envolvendo o Renascença inteiro, para só depois apascentar a cidade, deitando-se pela Ponte do São Francisco, em rumo aos sobrados e as ladeiras da Praia Grande.

Não pude vê-la, iluminado pela luz fria do espaço em que me encontro, na paz de minha família e meu lar. Eu, do lado de dentro do apartamento, fora da noite escura, que o vidro denuncia pela luz dos postes, dispersos sobre os telhados e as ladeiras. Não pude vê-la. Apenas a ouvi. Ela, a coruja, do lado de fora, dentro da noite escura, na penumbra que a luz projeta sobre as calçadas, pelos olhos acesos dos postes solitários.

Mas ouvi seu piado às 23h35min horas, de quinta-feira, deste novembro que chega, trazendo as esperanças das primeiras chuvas da estação, e as lembranças intermináveis das travessuras da infância, com tudo o que isso significou, como experiências essenciais e definitivas de vida.

Em minha infância, quando a coruja piava  -urdindo seu lamento, seu voo de pássaro noturno, de ave de mau presságio, sobre os telhados de todos nós-  os mais velhos interpretavam como sinal de agouro. E corriam a se benzer, a rezar, pedindo a Deus que afastasse aquele infortúnio. Era sinal de agouro, na crença cultural que tinham, e nisso envolviam nossos sentimentos também.

Meu avô materno, meu pai, minha mãe, minha tia, que tanto nos ajudaram a ser temente a Deus, nos ensinavam que era sinal de agouro e que alguém morreria ou teria morrido, nas redondezas. Era um pio terrível, arrastado, cortante como um fio de navalha. Para nós, com o ensinamento deles, era a “Rasga-mortalha” que piava, anunciando a má sorte de alguém.

Em verdade, nunca soube de morte alguma ligada, a esse presságio sombrio. Mas nunca, em tempo algum, mesmo já adulto, e ainda agora, eu pude e posso ouvir o pio de uma rasga-mortalha, sem me recordar da pessoa de meu avô, Manoel Furtado e da pessoa de minha mãe, Anatália de Oliveira Furtado. Ela, a coruja, de certo modo, ainda agora, é temor e desespero, como o foi para minhas perplexidades de juvenis.  

Onde estão meus ascendentes, nesse instante? Estão todos encantados definitivamente, na noite profunda da eternidade. Estão no limiar das lembranças, onde podem ser imprecados; onde podem ser ouvidos; donde podem guiar e proteger nossos passos, conduzindo-nos no caminho do bem. Estão em torno de nós, sob a face imutável das lembranças. E sob a face inelutável das lembranças, gravitam meus pensamentos, meus sonhos infantis mais duráveis e reais agora. Gravitam ainda as imagens, as faces de minha mãe e meu pai, que nunca vão abdicar de me proteger. E protegido por eles, vou compondo os sonhos, as frases, as esperanças novamente, como se o tempo pudesse parar, como se nós pudéssemos estancar, ficar cristalizados, aliados ao tempo e à vida.

O que pode uma coruja, dentro da noite? O que pode uma noite, dentro da alma de um homem, cujo sentimento maior é o de amar? Uma coruja pode o canto, pode o medo, pode a vida. Um homem, dentro da noite, pode sentir, entender, apagar a coruja, dentro de si, dentro de tudo e pode reanimá-la também, para que a vejam todos os seus companheiros.

Estou em paz comigo, com meus amigos, com minha família, com todos os meus semelhantes. Estou simplesmente, coberto de paz e tenho que repartir com as pessoas que posso motivar: com minhas crônicas, meus artigos, minhas palavras e minhas formas de agir, que refletem essa paz e essa alegria, meus passos de cidadão.

Sou um homem a sonhar com o futuro, alongando seus olhos por sobre os horizontes, na esperança de ver drapejar no tempo, a bandeira desfraldada da esperança. No tempo, a serviço da paz, da juventude, da família, dos idosos, dos deficientes físicos, de todos os homens de boa fé que acreditam que esse mundo tão belo, não pode ser degradado por nossas próprias mãos, por nossas próprias bocas de silêncio e pacto.

Deste lado da noite, sou um homem feliz com sua própria face. Sou um homem que não teme o pio da rasga-mortalha, ainda que as lições de meu avô, de minha mãe estejam vivas dentro de mim. É que o tempo, ele próprio desvendou os mistérios da infância; apontou os rumos a seguir, pondo-nos a serviço do interesse comum, coletivo por sua mais íntima natureza.

Com a responsabilidade aumentada sobre meus ombros, o que me envolve agora não é o pio da coruja, dentro da noite. Mas sim, o clamor popular; os anseios dos que confiam em mim, dos que avaliam o meu trabalho, minha existência, me conferem aprovação.

O pio da rasga-mortalha, então, dentro da noite escura, é um canto de esperança dentro da noite clara, nítida e construtiva que canta em mim, neste instante da primavera, entre dores de perdas em família, entre a sensação de impotência que nos toma a alma, entre a energia Divina, imperscrutável, e a finitude insensata e inevitável de todos nós. Como é fugaz a vida que habita nosso corpo! Como é, ao mesmo tempo, vã, por mais que seja permeada de positivas semeaduras!

Amar a cidade é encontrar-se dentro dela, mirar-se em suas faces, e se reconhecer como pessoa. Incluindo, nesse reconhecimento, a vida fugaz, a impotência diante do espaço e do tempo, em nossa passagem.

Há cantos de coruja, piando dentro das noites que estamos vivendo. Dentro da cidade, dentro da vida, dentro de nós e de nossos sonhos e esperanças.

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