O alegre pregoeiro da manhã

manhã de solCostumo ouvi-lo bem cedinho, quase toda manhã. Ele vem, com o alvorecer do dia, quase obrigatório, como o canto dos galos nas pequenas cidades do interior. Ele vem com a sonora algazarra dos pássaros que encantam meus olhos e ouvidos, e habitam as árvores e o verde habitual das ruas do Renascença.

Ele vem como os carteiros matinais, mensageiros de surpresas sempre, e sempre bem-vindos. Posso dizer que é bom ouvi-lo, que é bom seguir o som de sua voz aguda, à distância, mesmo sem vê-lo, e poder senti-lo mais perto ou mais longe do prédio onde moro, transitando pelas ruas vizinhas.

Assim, ele vai repetindo o seu ritual, quase toda manhã, se anunciando e anunciando sua mercadoria, com plena convicção de quem sabe o que está fazendo. Refiro-me ao vendedor de cuscuz, mas não qualquer cuscuz. E tanto isso é verdade que ele, o pregoeiro, não apregoa a venda da espécie cuscuz, mas de Ideal, que é o nome de fantasia da empresa que o produz. Ideal significa, então, para aquele orgulhoso vendedor, cuscuz com excelência de qualidade, e grande aceitação entre os apreciadores. Seu pregão, ouvido à distância, pelos quarteirões circunvizinhos, e levado por sua voz aguda, consiste apenas em um nome: – Ideal, ideal, ideal.

Assim ele vai repetindo, com voz sonora e monocórdia, sem desistir nunca, sem parar definitivamente, enquanto a luz do sol vai iluminando e aquecendo a manhã. Na última segunda-feira – diferente das vezes anteriores, em que só conseguia ouvir-lhe a voz – pude vê-lo pela primeira vez, em frente ao nosso apartamento.

E fiquei na sacada, apreciando sua desenvoltura no cumprimento da missão que realiza sempre muito pontual e fiel. Quando o escutava a distância, sem conseguir vê-lo, imaginava-o com hábitos semelhantes aos vendedores de pamonha, de sorvete, que povoavam a cidade de nossa juventude.

Por isso mesmo, sempre o representava, na imaginação, conduzindo o Ideal em algum recipiente apoiado sobre sua cabeça. Os pregões que me acostumei a ouvir, na infância e na juventude, aconteciam mais à noitinha, com as luzes dos postes já acesas e o claro-escuro da noite que a Praça Deodoro refletia. Eram os pregões de pamonha: – Pamonha, taá quentinha/Chega na pamonha! Os pregões dos sorveteiros eram, quase sempre, depois do almoço, em torno das 14 horas: – Sorveee-te de coco, sorveee-te de coco, sorveee-te de coco!

Eles faziam nosso encantamento, nossa ânsia de espera. Sempre tínhamos algum dinheiro guardado, a sete chaves, para essas guloseimas, nem sempre aceitas por nossos pais, pelo conflito com nossa alimentação, em casa. Tive a surpresa de vê-lo, equilibrando-se sobre uma bicicleta, entre poças d’água e depressões no asfalto, na parte baixa da rua, enquanto o recipiente do Ideal, uma caixa retangular, talvez revestida de zinco, estava preso sobre a garupa.

Logo adiante, pude vê-lo descer e empurrar a bicicleta, ladeira acima, na trajetória para alcançar a rua paralela. Ele ainda tentou subir pedalando, mas o esforço foi demasiado pela dimensão da ladeira. Mesmo assim, em nenhum momento, deixei de ouvir ecoar, pela manhã das quadras do bairro, seu pregão matinal: – Ideal, ideal, ideal!…

A julgar pelo timbre da voz que escuto, quase toda manhã, anunciando o Ideal, posso dizer que é a mesma pessoa; que sempre a mesma pessoa é destacada para fazer o pregão em nossa rua. Digo isso sem saber se o itinerário que ele cumpre é uma decisão especialmente sua, em função de sua freguesia, de suas possibilidades de acesso, ou uma decisão da empresa, caso seja seu empregado.

Para mim, instantes como esse, de puro prazer, tornam a vida das cidades menos amargas, mais humanas, mais românticas, mais fraternas também. Tornam a vida das cidades menos amargas e tornam a vida das pessoas mais amenas. Eles representam um encontro do homem contemporâneo, globalizado, com seu passado provinciano, com seu humanismo usurpado, com o lado mais sensível e gregário de seu paraíso perdido.

A outra face desse espelho, no entanto, reflete a frieza, a ausência, a quase indiferença das pessoas ao pregão que nosso vendedor vai fazendo, anunciando seu produto, na manhã que amadurece no Renascença. Por onde meus olhos e ouvidos puderam segui-lo, indo por uma rua, voltando por outra, ninguém, pareceu interessado em sua mercadoria. Eu mesmo, ainda não experimentei o tal Ideal. Mas irei provar, em breve, esse que é vendido em minha rua.

Apesar disso, ele continuou com seu pregão, em alto e bom som: -Ideal, ideal, ideal, ideal! Seguiu cumprindo sua missão, honrando o seu trabalho, buscando contentar desejos e ganhar dinheiro para prover, talvez, sua própria vida. A persistência de seu pregão é comovedora, e a aceitação de seu produto deve gratificá-lo, de forma compensadora. Mas isso acontece diante de meus olhos de indagação e espanto. Apesar de tudo, como é bom ouvir seu pregão cedinho da manhã, também anunciando o dia. Ama a cidade é ter olhos para ver e ouvidos para ouvir os pregoeiros que anunciam suas mercadorias. É preciso amar a cidade.

ivansarney@uol.com.br

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