A quem encontrar uma felicidade

Felicidade e ruaO poeta e compositor Chico Maranhão registrou, em uma de suas mais belas canções, um fato inusitado que revela a grandeza de sua alma, de seu espírito elevado, de seu ser solidário, e de sua poesia. Na canção, ele na anuncia: “Trago esta felicidade que encontrei na minha rua / Quem é seu dono, que está no reino da lua / Que se apresente, que é verdade nua e crua / Nada comente, vá levando se ela é sua…”.

Lembro a beleza melódica, filosófica e poética dessa canção, neste momento em que me deixo conduzir por perplexidades, ante as contradições do homem, a degradação de seus valores morais e éticos, o exercício sombrio de seu poder temporal. 

Nosso poeta, num gesto de intensa fraternidade, de civilidade e humanismo, anuncia que encontrou uma felicidade, perdida em sua rua, e pede que seu dono se apresente para buscá-la. Diz, ainda, que seu pretenso proprietário nada precisa provar ou comentar sobre ela ou sobre o fato. Tudo o que ele precisa fazer é levá-la, se ela for sua.

Que belo gesto de acreditar no homem! Que belo gesto de solidariedade humana, o de quem encontra uma preciosidade perdida e, simplesmente, deseja entregá-la para alguém que alegue ser o seu proprietário.

O gesto de desprendimento do poeta é uma chama acesa no coração do homem fraterno, do homem que esperamos ver renascido, para encontrar-se com sua essência, realçado pela beleza cósmica do novo século, talvez um novo Século das Luzes, com o recrudescimento dos mais elevados valores do homem.

O poeta, demonstrando ele próprio, que tem uma grande felicidade que é sua, não almeja a felicidade de ninguém. Está contente, com sua própria felicidade e tudo o que ela lhe realça, e o faz espargir sobre as outras pessoas. Tudo o que ele quer e deseja é que o dono da felicidade que ele achou em sua rua, venha buscá-la e leve-a, se ela for sua. Não lhe importa se a felicidade que ele achou, possa vir tornar mais ampla sua própria felicidade, possa habitar sua alma. Ela não é sua e precisa ser devolvida a quem a perdeu.

Para ele, poeta, humanista, alguém perdeu uma felicidade e por isso mesmo, deve tê-la de volta, porque uma felicidade é coisa essencial para a alma humana. Demonstra uma grande preocupação com o homem, buscando o seu semelhante para devolver-lhe uma riqueza incomum. Afinal de contas, muitas são as pessoas que perdem felicidade pelas ruas, ao longo da vida. Mas, poucas são as pessoas que têm o privilégio de encontrá-las, e grandeza espiritual e moral de querer devolvê-las a outrem, num gesto de imenso desprendimento.

O gesto do poeta, tão belo por seu significado humanístico, coloca-nos diante de outra constatação menos louvável, em seu sentido existencial: há pessoas perdendo felicidade pelas ruas. Essa constatação assume conotação de gravidade se a afirmação for: as pessoas estão perdendo felicidades pelas ruas. E essa parece ser a realidade deste nosso final de século, num mundo dividido entre os valores do consumo e do poder; um mundo que tripudia sobre os valores morais e espirituais do homem, e o rotula como um agente de compras, um cliente a mais num mercado de consumo, com regras draconianas e, muitas vezes, amorais.

Por que me ponho, nesta noite de agosto, a realçar estes aspectos sombrios do mundo contemporâneo? Porque, talvez, alguém precise de conforto, de saber que não está sozinho, no sonho e na esperança de ver acontecer a reconstrução do homem, que será fruto de nossa semeadura. Porque, talvez, precisemos repetir que a busca da felicidade deve ser um trabalho diuturno, que devemos empreender, dentro de nós mesmos, sem abrir mão de encontrá-la.

Além disso, porque a sociedade precisa de gestos humanos, morais e eticamente construtivos, como o do nosso poeta, em sua construção figurativa. Porque o mundo precisa de poetas e filósofos, para sonharem, para perquirirem, para elevarem os pensamentos e para desfraldarem as bandeiras com que a paz envolverá todos os homens, um dia. Porque precisamos voltar nossa atenção para os outros. Olhar em torno de nós e compreender que a vida é um milagre coletivo, e que nossa própria vida se alimenta de outras vidas. Ninguém se basta a si mesmo, num plano de realização individual. Diz uma canção de Tom Jobim: “Fundamental é mesmo o amor / É impossível ser feliz sozinho…”

Há pessoas perdendo felicidade pelas ruas. Precisamos fazer alguma coisa por elas. Quem encontrar uma felicidade não a recolha se não for sua. Procure seu dono, anuncie, leve-a ao encontro de quem a perdeu.

A felicidade que encontramos, e dela usufruímos como nossa, pode mesmo refletir quem somos, pois é produto de nossos anseios e sonhos e, por sua própria natureza, é fugidia como eles.
A felicidade de cada um de nós parece mesmo estar dentro de nós, no mais recôndito de nossa alma. Perder uma felicidade pode significar estar perdido, também. Uma felicidade achada na rua pode ser uma alma perdida, que não retornou à sua morada material.

Tente devolver a alguém uma felicidade perdida, se você tiver o privilégio de encontrá-la. As canções dos dois poetas nos alertam, em última instância: é preciso amar.

 

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