Quando é preciso ouvir o cidadão

De repente, sem o menor debate, sem qualquer aviso, sem qualquer consideração, a área da Avenida Litorânea, aonde existe uma pracinha e um pequeno parque público com livre acesso para crianças, foi tomada por cones proibindo o estacionamento de veículos automotivos, dos dois lados da avenida, numa faixa de extensão de quase quinhentos metros.
Era domingo, com um fim de semana prolongado pelo feriado do Dia de Finados, na terça-feira. Aquela área, no entanto, sempre muito movimentada nos fins de semana e nos feriados, estava iluminada. Mas, nem de longe, tinha o fulgor, o brilho do movimento que habitualmente ostentava nos fins de semana precedentes.

Frequentadores habituais daquele local, onde costumamos levar nosso pequeno Caio para divertir-se no passeio a cavalo, no pula-pula, no escorregador, meu amor e eu, quando chegamos ali, fomos tomados por aquela surpresa: a existência profusa de cones, um ameaçador caminhão de reboque, vários pequenos grupos de guardas de trânsito, com talonários nas mãos e em ostensivas posições de vigilância.

O primeiro olhar veio sucedido ao primeiro choque. E o primeiro choque ficou por conta da paisagem humana, social e cidadã que nos acostumamos a ver, a sentir e integrar com nosso convívio, nosso aval, nossa presença. Presença de pessoas, presença de pais, no processo de conviver e educar seus filhos, como tantos outros que, de forma cúmplice, encontramos com os mesmos empenhos e dedicação, cuidando de seus filhos.

Onde estavam as tantas crianças que nos habituamos a ver ali, com faces repetidas, com faces renovadas, mas com o mesmo encanto lúdico, correndo, pulando, vivendo, construindo e fortalecendo traços de suas personalidades, de suas histórias de vida, no convívio de pais, familiares, de amigos ocasionais que ali se encontravam? Onde estavam elas? Onde estavam seus pais?

Nós estávamos ali e podíamos, naquele instante, entre a surpresa do cenário que nos espreitara e a inconformação que nos fremia a alma, sentir a extensão do dano que aquela decisão causava. Estávamos ali, como sempre, um entregue ao outro, na comunhão do amor que nos envolve os corpos e as almas, sem o nosso pequenino que ficara em casa da avó. Tínhamos ido rápido, apenas para tomar o guaraná da Vânia, local onde tudo é de excelente qualidade e sabor: o guaraná, os sucos, as tortas, os bolos, os doces, os pasteis, os quibes. Tudo preparado por ela, que é exímia doceira e ama o que faz, com dedicação, com paciência, com incrível e obstinada teimosia. Por tudo isso, estamos entre seus inúmeros fregueses cativos.
 
Tínhamos um problema comum a todos os que ali não estavam, aos que ali não paravam ou não pararam, aos que se indignaram antes de nossa chegada. O problema era: onde estacionar. Do lado direito, sem qualquer sinalização horizontal ou vertical que indicasse proibição havia anos, estavam os cones indicando proibição, agora. Do lado esquerdo, sobre o capim nativo, num espaço sem qualquer arborização, sem qualquer sinalização proibitiva havia anos também, agora estavam os cones proibitivos.

Depois de duas longas voltas pelo mesmo local, finalmente estacionamos há quase dois quilômetros da praça, e fomos caminhando com receio de assalto, bafejados por um vento incessante e forte, e uma incontida vontade de chegar aonde pretendíamos. Queria compreender, mais de perto, algumas coisas daquele cenário que nos afrontava.

A presença de guardas municipais revelava que a ação era da Secretaria Municipal de Trânsito. Os guardas estavam no cumprimento de ordens recebidas e procuravam cumpri-las com extremo zelo, mas não pareciam muito entusiasmados com aquela ação. Afinal de contas, desde que a Litorânea foi inaugurada que o estacionamento naquela área ficou consagrado como prática legal (administração de Conceição Andrade, de Jackson Lago de Tadeu Palácio).
 
Na praça e ao longo dela, desde a concepção da avenida, foram implantados bares, lanchonetes, quiosques, barraquinhas de artesanato e comidas típicas; comércio informal de passeio público, com coreanos, brasileiros, paraguaios. Ali, portanto, há trabalho empresarial, com empregados, com patrões, com impostos sendo pagos, e vários outros serviços que não pagam, mas fazem circular dinheiro. Trabalho, emprego, renda, tudo isso está consolidado ali, com contas a pagar e receber.

A decisão de proibir o estacionamento de veículos automotivos, nos fins de semana, a partir das sextas, e nos feriados, fere de morte as atividades comerciais que ali existem instaladas e as eventuais que ali se instalam e desinstalam no final das noites, como em muitos lugares, no resto do país.

Decisões como esta, de proibir estacionamento em locais como esse – um dos poucos locais que à cidade possui para diversão, lazer familiar e pessoal, ao ar livre, a beira-mar, com atividades comerciais consolidadas – não poderiam ser tomadas sem a precedência de debates, de audiência pública. Tudo isso, para aferir os sentimentos da população, dos cidadãos que utilizam esses espaços, dos cidadãos que neles exercem atividades comerciais, porque impactam negativamente sobre suas atividades econômicas e interesse social da população.
Qual o ganho que uma decisão dessa natureza acrescenta à cidade? Fluidez de trânsito? Não acredito. A presença de apenas um agente de trânsito, na saída da rotatória que desemboca na Litorânea resolveria qualquer problema nesse sentido.

Proibição total e extrema, na área limítrofe com a praça. No entanto, um caminhão que se transforma em bar (vendendo bebida alcoólica e tocando música em altíssimos decibéis) com a marca do Mateus estampada em todos os lados, estava ali, sobre o canteiro, sobre o capim nativo, exatamente onde nenhum veículo automotivo podia estacionar, como se estivesse licenciado legalmente, com o beneplácito de alguma autoridade municipal ou o compadrio, a conivência dos guardas que ali estavam.

A Câmara Municipal de São Luís poderia abraçar essa causa, pois ela interessa à nossa cidade, sob vários aspectos. Amar a cidade é estar ao lado das causas que lhe dizem respeito.
ivansarney@uol.com.br 
 

One thought on “Quando é preciso ouvir o cidadão

  • 27 dezembro, 2010 em 11:25
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    Exeelnte Ivan. obrigado por lembrar que as coisas o publicas são feitas para o povo e não o povo para as coisas publicas.

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