A brava e astuta gaivota

gaivota-pela-pc3a1scoaNo encanto do dia que amanhece, a pequena gaivota adeja e amanhece. Amanhecer, independente de ser gaivota, é renovar-se com a manhã molhada de orvalho e tocada pelo canto matinal dos pássaros.

Pelo canto, pelas formas, pelas cores, pelo verão que recolhe a luz e vai cedendo, ao outono que se anuncia, as folhas que se desprendem das árvores para intumescer a terra e celebrar a vida, nesta quinta-feira de março.

Amanhecer, no universo da lagoa, é manter-se vigilante ao movimento dos peixes, dos pequenos cardumes que se movem sob o espelho das águas rasas, independente de seu odor. Amanhecer é sentir-se num mundo novo, onde moldamos sonhos, onde esperanças transitam, em cores e formas humanas, dialogando com Deus e celebrando a vida.

Amanhecer, pelo menos do ponto de vista da pequena gaivota, é estar vigilante, adejando as asas e pairando no céu, na corrente do vento, e manter o olhar aguçado nas vidas que se movem sob as águas, porque ali está o alimento de seu corpo alado. Desse modo é que a pequena gaivota amanhece, independente de meus olhos e de minhas emoções.

Ela parece brincar ao vento, com as asas estendidas para manter-se sem esforço, pairando sobre as águas, numa estratégia de busca, de avaliação, de espera. E assim fica até que, de súbito, recolhe as asas e desce veloz, como uma seta disparada certeira, e mergulha para logo emergir batendo as asas e levando no bico sua presa fatal.

Por seu pequeno porte, ela não busca as presas maiores, os peixes maiores, que tornariam inútil sua caçada e breve a sua vida. A natureza, no mundo animal, aguça o instinto dos predadores para a harmonia que se impõe na  cadeia alimentar. Uns se alimentam de outros, com absoluto respeito à saciedade da fome, ao sistema de defesa e de ataque que Deus lhes deu, respeitando o porte, as forças e a capacidade de reagir de suas vítimas.

A pequena gaivota é pródiga nas lições que vai dando, no exercício de sua caçada. Algumas vezes, mesmo veloz e decidida, bem próximo das águas de seu mergulho, ela abre as asas e de novo adeja, subindo sem finalizar seu intento de captura. A fugidia caça, então, num movimento de pura casualidade e sorte, terá escapado daqueles bicos afiados. E segue seu destino natural, cumprindo o equilíbrio da cadeia alimentar.

O que parece, portanto, ser o momento adequado, o exato momento do ataque fatal, pelo menos para a pequena gaivota, pode mostrar-se ilusão pelo concurso de uma pretensa vítima. O que torna inglória, muitas vezes, a caçada da pequena gaivota é o instinto de sobrevivência de que somos todos dotados. A luta imanente pela vida é parte da vida e do viver, em todas as espécies vivas que Deus colocou na face da Terra.

Por isso, a pequena gaivota não desiste, enquanto a manhã vai mostrando suas luzes. Ela permanece atenta, fiel à sua natureza caçadora, fiel à sua gênese, fiel à sua história, fiel ao sentido de sua própria existência. Ela não nega e não trai a si mesma, a seu instinto de ave predadora, às suas companheiras que voam em pequenos bandos, no mesmo cenário matinal, tocadas pelas mesmas motivações que até ali as trouxeram.

Elas são obstinadas e valem-se dos olhos e do olhar para identificar suas caças, para sentirem e avaliar suas possibilidades de sucesso ou insucesso de captura, nos ataques que empreendem. Com os olhos elas fazem mais que ver, elas quase pressentem, elas quase perscrutam o que é vida, o que se move sob o espelho de águas que parecem turvas a olhos humanos.  

A pequena gaivota adeja e amanhece, no encanto do dia que amanhece. A manhã nos oferece lições orvalhadas, entre flores que desabrocham anônimas, e pássaros que gorjeiam intermitentes, nas hostes do manguezal, na paisagem e no bioma da lagoa.

Uma gaivota intrusa, no entanto, surpreende nossa pequena gaivota, em pleno vôo, tentando arrancar-lhe dos bicos fechados, a pequena presa há pouco conquistada, num exaustivo trabalho de paciência e perícia. Ela tenta e chega a ameaçar, mas é repelida pelo vôo sinuoso, rápido, quase em semicírculo, que a pequena gaivota lhe impõe, numa demonstração clara de resistência e argúcia.

A gaivota intrusa, usando a lei do menor esforço, parece desistir ludibriada, e vai pousar no mangue seco, a espera de uma nova chance para poder atacar. Pura esperteza é o que demonstra a gaivota intrusa, pequena como a nossa gaivota, mas incapaz de aventurar-se no mergulho caçador, de medir e avaliar suas possibilidades de vitória, contra uma presa interessada em manter-se viva.

Que motivações teria a gaivota intrusa para agir dessa maneira? O instinto do predador é caçar. A caça, nesse caso, pertence a quem caçou. Tomar é a lei do menor esforço, é o desvio que desnatura o bando, o grupo, e o divide. Tomar, na lei dos homens, é roubar. Roubar é crime. No mundo animal, tomar também é caçar, é a busca da sobrevivência.

Dessa maneira ainda, a pequena gaivota é pródiga nas lições que vai dando, ensinando a resistência, negando aos pretensamente espertos – aos que tentam se beneficiar do trabalho dos outros, incapazes talvez de gerar seus próprios frutos –  a colheita fácil de frutos que não semearam.    
   
A pequena manhã voa com a gaivota que amanhece. A pequena gaivota amanhece na manhã que voa. De uma ou de outra forma, um pouco desta manhã vai ficando em mim, que caminho e penso na manhã que voa. Amar a cidade é refletir a colher a lições da natureza.

 

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