A palmeira adormecida e o tempo

 

images (14)Acompanhei, nos últimos  anos, o drama de uma palmeira imperial que pareceu fenecer; bela, adulta, íntegra, ante meus olhos de contemplação e o vento fresco das manhãs, que ainda teimam a soprar sobre a cidade.

Foi sempre no curso das manhãs, logo no início delas, que eu registrei as mutações dessa palmeira, como testemunha das horas e do tempo que acontece na lagoa da Jansen, em minhas caminhadas matinais.

Caminhar, por aquele espaço, não é só um exercício de cuidados físicos, é um momento de interação com a natureza, com as pessoas que por ali circulam, num encontro que é mais silêncio do que palavras. Mas que irmana e une, numa fraternidade diversa e plural, incluindo as árvores, os animais e as aves, tudo em perfeita comunhão com Janaína.

A palmeira, ali, plantada onde meus olhos a descobriram, já adulta, do alto de seus quase vinte metros. Fica em frente a uma estação de aparelhos para a prática de esportes, que integra a circuito urbanístico da lagoa. Fica, ali, em frente à casa do advogado Walmir Seguins, que talvez a tenha plantado.

Para quem vem da lagoa, usando as pistas que a circundam, internamente, no sentido contrário aos ponteiros de um relógio, pode ser vista um pouco antes de começar a área mais umbrosa, mais densa de árvores, mais úmida e mais deserta, também, chamada de bosque, por todos nós.

Pois bem.

Por volta de 2002, talvez na segunda metade daquele ano, essa palmeira linda, solitária e robusta, começou a fechar, sobre si mesma, suas palmas radiantes, num processo lento e silencioso. Logo, nos dois ou três meses seguintes, elas as recolheu plenamente, apontando-as para o chão e murchando-as, sem permitir, contudo, que nenhuma se desprendesse de seu tronco maternal.

Não satisfeita, dobrou a parte superior de seu tronco – sempre mais fina nas palmeiras imperiais – e curvou-se, como quem dobra o pescoço de vergonha ou tristeza, mergulhando em profunda agonia.

Assim, completou seu ritual de despedida, e pareceu morrer. Pareceu morrer sem qualquer interferência humana, sem pedir desculpas, sem pedir perdão, sem dizer adeus. Sem qualquer explicação ou motivo aparente, renunciou ao afago dos ventos, ao canto e ao aconchego dos pássaros, especialmente dos bem-te-vis que gostavam de cortejá-la, alongando suas asas, em suas palmas abertas.

Nunca passei por aquele local sem dar-lhe bom dia, sem contemplar aquela palmeira majestosa; sem admirar sua elegância, com as palmas expostas; sem dialogar com ela sobre a manhã radiante; sem me sentir, um pouco, banhado por sua energia, sua luz e sua força.

Nunca passei por ela sem meditar sobre o seu drama, desde quando o percebi. O que eu considerava drama era o fato dela ter fenecido, assim, quase de forma súbita, como se tivesse renunciado à vida. Renunciado e nos deixado, um pouco, órfãos de sua presença, de sua grandeza, de toda a energia que dela emanava.

Nesse estado, de aparente fenecimento, ela permaneceu nos últimos quatro anos. Afirmo, sem receio de estar errado, porque testemunhei, com olhos de indagação e espanto, esse fato natural, que pode ter escapado aos olhos de muitos. Mas que, certamente, encheu de curiosidade, de tristeza, a alma de quantos tivemos a oportunidade de perceber esse detalhe da vida, no pequeno universo que exubera em torno da lagoa.

Nos últimos meses de 2006, ela, que parecia estar finita, começou a dar mostras de vida, parecendo acordar de uma letargia, de uma hibernação intencional, que deve ter explicações científicas, no campo da botânica. Mas que é menos importante buscar, agora.

O que importa é que ela, nos últimos meses, vem levantando as palmas que voluntariamente recolhera, murchara e enegrecera. Mas que, também, por capricho ou precaução, não deixara que se desprendessem de seu tronco altivo. Suas palmas estão se erguendo, lentamente.

Primeiro, foram mudando de cor, se inundando de clorofila, e se deixando acariciar pelo vento, com cumplicidade e ternura. Depois foram se erguendo, lentamente, e ainda estão se erguendo, para encanto e alegria dos pássaros, das manhãs, de quantos podemos observá-la, e, provavelmente, daquele que a plantou. E que, como eu, certamente, acompanhou seu drama.

Depois de levantar, ostensivamente, suas palmas, começou a reerguer a parte superior de seu tronco, aquela que havia dobrado, talvez por tristeza ou desencanto. E continua a levantá-lo, a exibir, mais ainda, suas palmas, para farfalharem ao vento fresco do verão, que se prenuncia.

Quero ater-me às minhas indagações de simples observador matinal, incansável, talvez, na busca de sentir e aprender com as pequenas maravilhas da vida. Que motivação teve aquela palmeira para agir do modo que agiu? Reagiu a uma agressão ao seu sistema vital; a alguma desfeita, produzida por humanos, por algum pássaro descortês? Ou, ainda, as palmeiras podem hibernar como os ursos, mas com um período de hibernação muitas vezes maior? É normal que as palmeiras imperiais, a exemplo das águias idosas – que se recolhem para ter renovadas as garras e iniciarem um novo ciclo de vida – tenham esse ciclo novo de vida ou se utilizem desse recurso, para reagir a uma agressão ao próprio meio ambiente?

O que eu chamei de drama, em verdade é um espetáculo longo, esplêndido, que a natureza nos ofereceu e oferece, sempre, uma vez mais. Espetáculos, como esse, podem nos dar muitas lições, se estivermos atentos à vida que viceja em torno de nós. Essas lições podem estar resumidas na palavra mutação, e na compreensão de que somos partículas da mesma ordem universal, de que somos mutantes, como a palmeira e o tempo.

Hoje, ela permanece revigorada, bem viva e esplêndida, em sua exuberante beleza. Oferece exemplo e testemunho de que a vida opera milagres em suas mutações, na natureza. Amar a cidade é aprender com as lições cotidianas das coisas naturais. É preciso amar a cidade.

 

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