Não te reconheço Carnaval!

 

images (5)Sigo pela Praça Deodoro, nessa manhã de sábado, buscando as lembranças que o tempo plantou em nossa memória, e que permanecem ali, quase intocadas e eternas, como testemunho da alma que a cidade recolhe, de cada um de nós que a habitamos.

Amanhã será domingo gordo e provavelmente choverá. O carnaval que o povo festejava já se cobriu de névoas, dobrando as fantasias, desfazendo as máscaras, calando as marchas e os ranchos, mudando o aroma do lança-perfume, extinguindo os corsos, os “assaltos” em casas-de-famílias, a fina ironia e a beleza das fantasias populares; o “sereno” dos bailes de mascaradas.

O poeta agora, diante de praça, é o menino diante do tempo e a própria cidade, diante do menino; diante e dentro do poeta que, entregue à manhã, desafia o esquecimento, compondo as recordações.

Lembro os versos de Gullar, no monumental Poema Sujo: “…O homem está na cidade como uma folha está num livro, quando o vento ali o folheia… A cidade está no homem, quase como a árvore voa no pássaro que a deixa…” 

Penso, enquanto caminho, que a cidade permanece mesmo, dentro do homem, com todas as suas transformações e magias, eternizada pelas emoções que produziu, e pelos referenciais que conseguiu fornecer à nossa existência. Não somos mais que a exata consequência disso, produto afetivo, psicológico, das emoções registradas em nossa alma.

Parte dessa cidade é que me toma pelas mãos agora, para me mostrar sua tela embranquecida, mas nitidamente gravada, no tempo em que o carnaval de rua concentrava ali seu ponto de maior enfoque e brilho.

Da Rua do Passeio vinha o corso, com a alegria dos carros alegóricos e parecia não ter fim, tantos eram os caminhões e automóveis enfileirados, com pessoas batucando e cantando músicas compostas especialmente para a época carnavalesca.

Era assim, quando éramos crianças, e meu irmão Ernane tinha medo de fofão. Corria, amedrontado por mim, dobrando a esquina da antiga Mercearia Brasil, para encontrar nossa casa, na Rua de Santaninha. Meu pai ainda era vivo e o ponto mais importante da cidade, para nós crianças, era a Praça Deodoro, onde brincávamos, sem nos dar conta do tempo.

Das ruas, vinha o “sangue-de-momo” que parecia manchar e logo virava água, pregando um susto em quem tinha a roupa atingida por aquela mistura; vinha o lança-perfume, de frasco dourado e metálico, que costumávamos atirar nos olhos dos brincantes e que ardia como pimenta. Das ruas, vinham ainda as fantasias de Cruz Diabo, de Ursos, de Baralhos e outras, às vezes, audazes e ferinas.

Um dia, ainda pequeno e curioso, eu quis ver uma fantasia de Eva, alertado por irmãos maiores, que ocupavam a janela da pequena casa que habitávamos, não me restando lugar. Eu queria ver a cobra traiçoeira, recompondo minha exata expressão de choro, lembrada por mamãe enquanto esteve entre nós, iluminando nossos caminhos, com sua doce e serena paz maternal. Acabei vendo a curiosa fantasia e não guardei lembranças do que vi.

Das ruas, vinham também os blocos: “Vira-latas”, “Pif-paf”, “Lunáticos”, “Versáteis”; vinham as tribos de índios, cuja rivalidade, traduzida em lutas corporais, sempre que se cruzavam, os jornais estampavam, no dia seguinte; vinham as escolas de samba: Turma do Quinto, Fuzileiros da Fuzarca, Águia do Samba; vinha a Casinha da Roça, única, em beleza, criatividade e charme.

Havia uma escola que trazia, na cabeça de seus componentes, uma lâmpada acesa. Chamava a atenção, e papai nos fazia acreditar que aquelas lâmpadas eram ligadas nos traseiros de seus brincantes.

Mais tarde, já morando na Praça de Santaninha, adolescentes e depois adultos, era outra a consciência do mundo que se forjava em nós, preparando-nos para o exercício de nossa plenitude.

No tocante ao carnaval, não carecemos de esforços para lembrar que o corso seguia pela Rua Rio Branco, descia pela a Jansen Muller, tomava a Beira-Mar, subia pela Rua do Egito, passava pelo Largo do Carmo, seguia pela Rua Grande e tomava a Rua do Passeio para encontrar, novamente, a Rio Branco.

Pude sentir, também, as famílias nas janelas, enfeitadas de serpentinas, confetes, fantasias, e o grande bazar ambulante quem eram os vendedores de roque-roque, de cartolinas, de óculos plásticos, de meias-máscaras, e de bisnagas para o Sangue-de-Momo.

Pude gravar, com olhos de distinção, as feições e os nomes das pessoas que se reuniam em nossa casa, ponto de harmonia e fraterno convívio. Havia um grupo de respeitáveis cidadãos que se vestiam de mulheres: Eli Gomes, Inácio Braga, Bichat Caldas, Raul Guterres, José Dourado, Antônio Saldanha, Vera Cruz Marques. Formavam um divertido e fraterno grupo, amigos dos quais, apenas Eli Gomes permanece entre nós, esbanjado saúde, com as graças de Deus.

Penso que amanhã, domingo gordo, a Praça Deodoro, com toda a carga afetiva de suas lembranças, estará vazia e deserta, guardando o silêncio respeitoso das coisas eternizadas.

Tenho esperanças, no entanto, de ver ressurgir uma nova festa de rua, carnavalesca e popular, a partir da Madre de Deus, foco de resistência cultural, ponto de efervescência de nossas tradições, alma boêmia da cidade.

Vejo que o carnaval deste ano vai retomando os rumos dos outros carnavais que estão dentro de mim e de todos aqueles de minha geração. Como disse Bulcão, um dos valores artísticos de nossa cidade: “Cada um de nós, tem um Carnaval dentro do peito…”  Amar a cidade é viver suas tradições populares. É preciso amar a cidade.

 

One thought on “Não te reconheço Carnaval!

  • 18 fevereiro, 2015 em 12:18
    Permalink

    Ivan Sarney,sempre sensato e muito categórico em suas sábias palavras…

    Resposta

Comente

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.