Que rufem os tambores-de-crioula!

Tambor de crioulaNossa cidade comemorou ontem, dia 8 de setembro, sábado, os 395 anos de sua fundação. Orgulho para todos os que aqui nascemos e temos o privilégio de habitá-la. Privilégio de ser parte de sua história, de respirar sua brisa marinha, de conviver com suas ladeiras, com seus sobrados, com seus telhados, com seus mirantes, com sua culinária, com seus festejos populares, com suas tradições, com seus contrastes e seus conflitos.

Privilégio de vê-la dialogar com seu passado e construir seu futuro luminoso, sem rupturas com sua trajetória urbana, incorporando cenários e moderna tecnologia, na perspectiva de um desenvolvimento sustentável.Na quinta-feira, dia 6, Dia Municipal do Tambor-de-crioula e seus Brincantes, a cidade também festejou uma de suas mais belas e contagiantes formas de manifestação da cultura popular do maranhense, neste caso, realçada em São Luís.

No mês de junho, a brincadeira do tambor-de-crioula foi inscrita como Patrimônio Imaterial do Brasil, em belíssima solenidade em que o Conselho Consultivo do IPHAN, sob a presidência do Ministro de Estado da Cultura, Gilberto Gil, aqui esteve reunido para os atos dessa inscrição.

A solenidade, permeada de cantos, danças e rufar de tambores, aconteceu no espaço sagrado da Casa das Minas, sob as bênçãos de Dona Celeste, e sob o testemunho ansioso e gratificado de centenas de brincantes, que fizeram um cortejo e saíram em procissão, com o ministro Gil e sua comitiva de conselheiros, até a velha fábrica São Luís, onde está abrigada a Casa do Tambor-de-Crioula, recentemente inaugurada pela Prefeitura Municipal.

Desde então, o tambor-de-crioula passou a integrar um seleto grupo de outras manifestações da cultura popular brasileira, inscritas como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira, ao lado do frevo, de Pernambuco; o samba de roda, da Bahia e o jongo, do Rio de Janeiro.

Essa inscrição, além do reconhecimento dessa singular e contagiante forma de expressão da cultura popular, representou o marco definitivo na luta por sua preservação, assegurando-nos que ela será documentada, estudada, reproduzida, ensinada, transmitida, com apoio oficial. Além disso, cada vez mais, será valorizada dentro e fora do Brasil, por constituir referência ao caráter e à identidade de nosso país.

Um dos primeiros estudos, documentados, do nosso tambor-de-crioula foi feito pelo saudoso amigo e professor Domingos Vieira Filho, publicado em um dos volumes do Caderno Brasileiro de Folclore. Mais do que uma tentativa de registrar -para evitar seu desaparecimento, ao longo do tempo- aquele trabalho representou um grande esforço de definir, de conceituar, de identificar as características dessa “brincadeira”, de natureza essencialmente profana.

De fato, o tambor-de-crioula, da forma como o conhecemos em nossa cidade, parece ter nascido, mesmo, nas senzalas, fruto do espírito extremamente lúdico dos negros escravos., vindos das mais diversas regiões da África: Guiné, Angola, Moçambique. Eles trouxeram seus deuses (orixás), seus cultos; suas danças rituais; suas crenças e suas devoções. Mas não lhes era permitido, no regime da escravidão, o cultivo desses deuses e de seus ritos devocionais.

Restou-lhes os lamentos, as preces solitárias e as danças profanas, como forma de relaxar das fainas diárias. O tambor-de-crioula, tudo indica, representa uma das formas de expressão lúdica dos negros escravizados, muitas vezes, provavelmente, com estímulo do próprio feitor.

Dança de origem africana, extremamente lasciva e sensual, ela é praticada por homens, que se revezam tocando os três únicos tambores que marcam suas batidas alucinantes; e por mulheres que dançam, requebrando-se e fazendo volteios, desafiando uma às outras através de umbigadas.

Os cantos são frases soltas, propostas por um dos tamboreiros, e repetidas por todos os demais, enquanto as mulheres dançam e nos contagiam, de forma quase magnética. Todos impulsionados por muita aguardente. É dança sensual, como já ficou dito, e nos irmana pelo som, pelo canto, pela beleza plástica que produz entre as saias rodadas e coloridas; entre os corpos que se contorcem em requebros; pelo que representa na história remota de todos nós.

Desde menino, aprendi a amar o som desses tambores, como o som das matracas do bumba-meu-boi. Isso era dever cultural, pois todas as festas populares que possuímos exibiam tambor-de-crioula. Isso era possível dado o seu caráter lúdico e sua desvinculação religiosa, o que não o atrelava a qualquer data no calendário litúrgico.

No ano de 2004, tive o privilégio de propor um projeto de lei, na Câmara Municipal, instituindo o dia 6 de setembro como Dia Municipal do Tambor-de-crioula e seus Brincantes, como forma de realçar, de unir e de permitir a valorização, por parte dos órgãos institucionais. É lei há quatro anos. Por isso há festas em todos os recantos da ilha, em todos os tambores, em todas as almas dos brincantes, na alma de cada um de nós.

Parabéns, portanto, a todos os integrantes de tambores-de-crioula, pela passagem do dia 6. Parabéns aos dirigentes da Associação de Tambor-de-Crioula do Maranhão, na pessoa de seu diretor, amigo Ubaldo e de Dona Raimundinha, como grande incentivadora.

De alguma maneira, todos nós, que vibramos com essa brincadeira, estamos em festa, com a certeza de que essa festa continuará, nos meses de setembro, com mais vigor, pelos próximos séculos. Amar a cidade é fortalecer suas tradições culturais. É preciso amar a cidade.

 

Comente

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.