O pássaro e o amanhecer

Os olhos do pássaro que me espreita, quase toda manhã, não me enganam. Não me enganam, não me traem, não me iludem em qualquer dos mágicos momentos em que nos deixamos perscrutar e enternecer. Nem quando permanecem fixos, ilusoriamente imóveis, nem quando se movem irrequietos, sem parecer desgrudarem de mim.

Os olhos do pássaro que me espreita, quase toda manhã, não pretendem me mentir. Eles apenas parecem me avaliar, entender meus movimentos, mensurar meus limites de cor e forma, e sentir como consigo viver sem ser pássaro. Esse ritual, em sua forma recorrente de acontecer, já se integrou aos dias que amanhecem diante de mim e, desta forma, o registro. Sim, porque os dias amanhecem de forma diferente, diante de nós e para cada um de nós.

O dia que amanhece diante de nós não carece de nós. Ele é pura ordem natural, com seus ritmos de vento, com formas e cores de nuvens, com luz ou sombra de sol, tudo tipicamente seu. São formas que se movem em sucessão, cumprindo um ritual milenar que independe de nossa vontade, movidas pelo tempo e pelo vento.

O dia que amanhece em nós, depende de nós. Ele é o modo como vemos, sentimos, interpretarmos o dia que amanhece diante de nós. Ele é realidade subjetiva e está ligado a nosso jeito de ver o mundo que nos cerca e, com ele, interagir.
Os olhos do pássaro que me espreita, quase toda manhã, não conseguem ver o dia que amanhece em mim. Do mesmo modo, o pássaro que amanhece diante de mim, não consegue entender minha presença no dia que amanhece diante de seus olhos. Mas eles, os olhos do pássaro, não me traem, e não querem me iludir.

Em pouco tempo, cumprido o ritual contemplativo que estabelecemos entre nós, sei que ele partirá. Irá pela manhã, imprevisível, levando encanto, música, reflexão, a outras tantas manhãs que estarão acontecendo diante, e dentro de tantas outras pessoas. Entendo sua partida voluntária como cumprimento de uma missão e o contemplo, sumindo entre as copas das árvores que testemunham nosso encontro matinal.

Amanhã ele tornará, como de costume. E, como de costume, novamente nos contemplaremos, olhos nos olhos, com intenções de partir. Mas antes que ele parta, entre posturas e gorjeios comedidos, me fará refletir sobre ele, sobre a manhã, sobre Deus, sobre o encanto de viver e testemunhar tantas formas de vida, sobre o encanto do singelo, sobre os humanos e nossos destinos transitórios.

Ele partirá, então, voando ligeiro e cantando, com ares de dever cumprido,  sem maiores considerações comigo. Partir, do modo como ele parte – sempre alegre e cantante – não me parece doloroso para ele, e não deixa instantes de amargor em mim. É um momento de contemplação que se interrompe, pelo tempo breve de um dia, para continuar no dia seguinte, já no alvorecer.

Para aonde irá o pássaro que me espreita, quase toda manhã, cujos olhos não me mentem, nem me traem? Para aonde irá, quando some de meus olhos, entre as copas das árvores? Que trajetórias constituirão seus destinos, nesta manhã especial de sexta-feira? Que distância percorrerá, agitando as asas na manhã luminosa? Só o silêncio responde às minhas indagações renovadas. O silêncio ou o vento que parece dizer: – Não sei.
Minha curiosidade não será satisfeita jamais.

A certeza de que jamais será satisfeita me encanta e seduz, como os olhos do pássaro, como o próprio pássaro diante de mim. Essa magia, especialmente como magia, não é para ser explicada, entendida. A magia de qualquer encanto não possui e não carece de explicação. Ela é para ser sentida, percebida por sua existência natural, por seu sentido didático e terapêutico.    
O pássaro vai, em plena e absoluta liberdade, descortinando a manhã luminosa, senhor de seu destino casual, e me convida a partir, a segui-lo em suas aventuras cotidianas que suponho não terem fim. Eu apenas o contemplo, da varanda do apartamento, sem vontade de ser pássaro. E me ponho a segui-lo como posso, com as asas da imaginação.

O pássaro, que pode me dar lições de absoluta liberdade, descreve volteios no céu, exibindo sua elegância, sua invejável leveza, e vai, mas não voa mais rápido que meu pensamento. Nem seu canto é mais belo que meu canto, na variedade de sons, e na pequena escala melódica que costuma repetir.

Cada espécie de vida e cada ser criado por Deus, com suas peculiaridades, com seu encanto, com seus recursos naturais para viver. Cada um com uma função, dentro da ordem universal. Contento-me pensando assim, no silêncio que sempre sucede sua partida.

Os olhos do pássaro que me espreita, quase toda manhã, não vêem as emoções que minha alma experimenta e os desafios que tenho de enfrentar todos os dias, como ser humano, como cidadão, na relação adversa entre o ser e o tempo; relação que vai marcado os dias, as horas, os anos e tudo o mais que, como nós, é transitório e vão. Amar a cidade é se encontrar nas manhãs e se ver refletido em todas as formas de vida que esplendem na natureza.

ivansarney@uol.com.br
www.ivansarney.net

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