A cidade e as nuanças da primavera

Sob o império do calor e da luz, esta semana, instalou-se entre nós a primavera. Chegou alegre e buliçosa, com seus ventos frios e úmidos, assanhando as árvores, as águas, o ritmo lento das formas, com as quais a natureza vai expondo o fascínio de suas forças, de sua energia transformadora. E nós no meio dessas forças, integrados a elas e sendo parte delas, como figurantes temporários de seus cenários, de suas paisagens sempre transmudadas,  mas perenes.

Este ano, em contraponto ao inverno rigoroso que tivemos a “chuva do caju” não veio. É dela o privilégio de acontecer todos os anos, no mês de setembro. Muitas vezes, antecedendo o dia do início da primavera. Outras tantas, a ele sucedendo, mas sempre no mês de setembro, fazendo madurar o caju, a manga, que são frutos sazonais em nossa cidade, em nosso sabor, em nossas tradições e em nosso contentamento.

“A chuva, não veio, o dia não veio, não veio a utopia..” como disse Drummond.  A chuva não veio, mas veio a esperança, mas veio a primavera e sempre virá a utopia. E veio desta vez como não tinha vindo dantes, tão alegre, tão vadia, tão alvoraçada e risonha, com o sopro arrojado dos ventos, nas manhãs, nas tardes e nas noites.

Quem teve ouvidos para ouvir, ouviu. Ouviu e tem ouvido a fúria branda dos ventos que andam a soprar nos quatro cantos da cidade, desde a semana passada. Todas as manhãs estão chegando assim, seguindo as madrugadas tão úmidas, quase frias, que entram pelas portas e janelas de nossos abrigos; que entram por nossos sentidos e vão nos acordar, nos sacudir, nos perfumar com as cores, as formas, com o aroma das flores que desabrocham apressadas, pelo toque febril da primavera.

Deixemos entrar por nossos largos sentidos, essa que é a estação mais festiva e festejada pelos povos, no mundo inteiro. As flores de nossa cidade já estão desabrochando. Toda a natureza veste-se de um verde denso, exuberante, vegetal, e exibe orgulhosa suas novas vestes. “Verde, que te quero verde…” como desejou Garcia Lorca. É primavera em torno de nós todos, como se tudo renascesse, como se dentro de nós se florissem: campos, parques, jardins muito verdes e muito coloridos; muito pessoais também, para com eles estendermos nossas mãos aos outros, como se os outros fossem nós. Como se nós fossemos os outros e pudéssemos nos ver refletidos no mesmo espelho d’água; no mesmo espelho de vidro, de luz que nos fizessem gravados nas faces implacáveis do tempo, para amarelar e amadurecer.

Somos seres transitórios, temporários, por isso temos pressa em ver acontecer nossos sonhos e esperanças; em ver alargarem-se os horizontes do homem, como a mais bela criação de Deus. Por isso, temos pressa sim. Pressa em fazer o bem. Pressa em semear as boas sementes. Pressa em trilhar pelos caminhos da luz, com a certeza de que alguém nos segue. Alguém nos seguirá onde formos, guiando seu destino por nossos passos e por nossos destinos, querendo muitas vezes, refletir-se na nossa luz e no nosso brilho. Por isso, também, é preciso dar bons exemplos, caminhar esparzindo luz sobre o caminho para que outros possam seguir essa luz e dela se iluminar.

Nenhuma vida, por mais que possa parecer, é insignificante que não possa dar exemplos, que não reflita com suas pegadas ou suas sombras, na vida de outrem. Somos seres únicos em nossa identidade pessoal, em nossos caracteres somáticos e isso nos torna especiais, dentro da ordem universal.

De nossas inteligências, de nosso senso crítico, se alimentam todas as outras espécies vivas do nosso planeta e de nosso sistema solar. Somos nós que nominamos, que conceituamos as espécies, que as definimos. Somos nós que nos emocionamos com as cores, com as formas mutantes de todas as coisas vivas, inclusive o sistema solar.

Por conta dessa vida dinâmica, os pau-d’arcos da ilha já estão floridos. É só olhar na Av. São Luís Rei de França, na Praça João Lisboa, na estrada de São José de Ribamar, na estrada de Raposa. Basta olhar e ver como é esplêndida a folhagem amarela que os envolve e explicita. Eles são o testemunho mais lúcido, mais delicado e firme de que a natureza é uma festa de cores que desabrocham, de forma sazonal, tempos em tempos.

Mas não só eles constituem a paisagem vegetal dessa primavera. O verde que se adensa verde; o aroma anônimo da pequena flor de beira-de-estrada, das chananas amarelas, das flores famosas, nos jardins. Tudo isso compõe o quadro paisagístico com que a natureza nos brinda, com sua sazonalidade, fazendo madurar a safra e apontando o tempo que a Bíblia conceitua como: tempo de plantar e tempo de colher aquilo que se plantou. Vamos abrir nossas janelas e deixar que a paz nos abrace, que nos abrace a primavera.

As nuanças cromáticas da cidade, na exuberância de seus verdes e de seus ventos úmidos, vão realçando a vida com seus encantos e suas seduções permanentes. Precisamos, no entanto, estar atentos para essas mudanças, para essas transformações que, independente de nossas vontades, vão alterando o ambiente que nos cerca, vão mudando as pessoas, vão dando novo curso à ordem universal.  

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