Poemas e canções, nas noites de lua e lembranças

ImagensNas veias da cidade, ainda seguiam românticos os bondes de ferro, deslizando sobre os trilhos, por onde iam e vinham, trazendo e levando o povo, para onde a cidade seguia.

Éramos jovens ainda, e trazíamos conosco a inquietação sonhadora de todos os jovens, a esperança nebulosa com o que viria a ser nossos destinos.

Havia uma canção nostálgica, que indagava sobre o futuro, cujo refrão, que vem como resposta, eu não esqueci: “… Que será, será/ Aquilo que for será/ O futuro não se vê/ Que será, será/O que for será…”  

A cidade começava a perder sua luz amarela e tênue, gerada pelos motores da Ullen Companhy, com os paus abatidos dos nossos manguesais. Não havia ainda a bandeira ecológica, desfraldada sobre nossas consciências, fazendo nossas cabeças.

A ponte do São Francisco, como o povo a batizou, ainda estava por ser iniciada, mas já tinha seus projetos concluídos. Era um sonho, uma esperança, uma necessidade, um desafio para o governo que o poeta José Sarney, no esplendor de seus 33 anos, havia implantado e cumpria, com brilhantismo, como Governador.

Vista da Beira-Mar, a Ponta de São Francisco era todo um denso verde, vegetal, apenas violentado pela presença, solitária e discreta, da alvenaria clara do Asilo de Mendicidade. As fardas das meninas da Escola Normal, do Colégio de São Luís, do Rosa Castro, do Ateneu Teixeira Mendes, do Santa Tereza, do Liceu Maranhense, eram de saias longas – quase no meio das pernas – e plissadas. As blusas tinham mangas largas e se fechavam por botões até a gola, adornadas por uma gravata de borboleta, que lhes dava um tom de austeridade.

Por conta disso, que era óbvio. E por conta ainda do imponderável, da magia que é própria desta cidade, envolta em lendas. Por conta de tudo isso, e de nossa sadia juventude, brindávamos a cidade, o amor e outros sentimentos grandes que alimentávamos, especialmente nas noites de lua cheia, saindo a cantar pelas ruas, no portão de certas casas.

Queríamos acordar nossas amigas, musas, namoradas, pretensas esperanças que se materializavam no sereno das noites, para nos enternecerem com suas faces, seus nomes, suas imagens femininas. Muitas vezes, queríamos apenas reafirmar o carinho de uma amizade, de forma musical e poética, como românticos saltimbancos, que tivessem a missão de espalhar a alegria, o amor, a fraternidade.

Estávamos sob o império melódico e modístico dos Beatles; sob o domínio lírico da bossa nova, e tínhamos, dentro de nós e no limite de nossos olhos, uma cidade que resplendia em azulejos coloridos, que era pacata e fraterna e que tinha a Praça de Santaninha, como centro de nossa referência juvenil, e dela nos alimentávamos.

Nas noites de lua, saltavam de dentro de nós as poesias, as canções, os versos e iam enchendo a madrugada soturna, de nossa voz harmoniosa, buscando acender corações adormecidos, ao som de notas musicais. Quem eram esses seresteiros? Lembro-me muito bem. Francisco Saldanha, Ubiratan Souza, João Pedro Borges, Seu Duque, Antônio Saldanha, Chico, Fernando Marão, Domingos Eugênio Freitas e eu. 

Algumas vezes, esse grupo se desfalcava de uns e ganhava outros personagens, outros amigos que queriam celebrar seus sentimentos e nos inspiravam a ir com eles, para fazermos as serenatas: Murilo Albuquerque, Fernando Barreto, Severo Trindade e Joe Trinta. Como sempre gostei de cantar, fazia conjunto com Ubiratan, Chico, João Pedro Borges, Francisco e Antônio Saldanha, que eram afinadíssimos e cantavam dos Beatles a Chico Maranhão, que havia chegado à cidade, com um repertório lindíssimo de sua autoria.

Além de Gabriela, premiada em festival, havia uma música linda, em que ele dizia: “Trago essa felicidade que encontrei na minha rua/ Quem é seu dono que está no reino da lua? Que se apresente/ Que é verdade nua e crua/ Nada comente, vá levando se ela é sua…”  Gostávamos de cantar essa canção, pela beleza poética e melódica que ela tem, e que hoje, mesmo que o tempo já tenha coberto de névoa aquele tempo de nossas esperanças, ela permanece íntegra, bela e comovente, dentro de nós.

Além de cantar, cabia-me declamar poesias, naquelas madrugadas em que, cobertos pela noite, nos enchíamos de coragem para traduzir sentimentos nem sempre expostos face a face, à luz de outros momentos. Eram muitos os lugares em que íamos, pois cada um de nós tinha uma indicação, um interesse sentimental a consagrar, naquelas noites.

O roteiro, portanto, era longo, mas passava na Astolfo Marques, onde morava a família Maciel, a família Saldanha. Passava no Largo de Santiago, nas Cajazeiras, onde moravam as famílias Brandão e Chaves. Passava na Rua do Passeio, onde morava a família Orcel Cavalcanti. Passava no Canto da Fabril, onde morava a família Aboud. Passava na Rua dos Remédios, onde morava família Braga, a família Bogéa. Passava na Rua do Alecrim, onde morava a família Oliveira.

Havia ainda outros lugares por onde passava o roteiro, por onde passávamos,  aonde deixamos ficar uma parte de nossos sonhos e esperanças, e por onde retornei de carro, refazendo um desses roteiros, para poder escrever com o sentimento de dever cumprido, com que o faço agora.    

As meninas de então, com suas prendas e gestos, também seguiram seus destinos e quase todas já são mães agora. Delas guardo, com carinho  e ternura, a lembrança de suas faces, de seus nomes, de suas presenças, para que nada possa ofuscar seus brilhos, a história de suas vidas.

Como foi bom ter vivido aquelas experiências; ter tido a oportunidade de ser amigo das pessoas que comigo faziam essas serenatas.

Onde estão os bondes? Onde estão seus motorneiros, cobradores, fiscais? Onde estão os bailes de máscaras? Onde estão os violões, as serenatas? Onde estão os sentimentos que tínhamos, que alimentamos e que alimentaram nossas vidas? Acho que tudo está vivo, dentro de cada um de nós que teve o privilégio de viver aqueles momentos. Amar a cidade é unir sua história, com a história de nossas vidas. É preciso amar a cidade.

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