Relembrando as tradições da Páscoa

Escrevo, na noite de quarta-feira, sob a chuva que anda a refrescar a cidade, cúmplice do aconchego fraterno ao qual nos entregamos, nestes dias cinzentos e molhados, de agora. A estação das chuvas, com toda a força de suas águas torrentes, renova as enxurradas, os sons das águas que perpassam as sarjetas e parecem não ter fim. Nem elas, nem as picadas de muriçocas, nem as roupas mofadas de umidade, nos guarda-roupas. Já é abril, com o outono presente no calendário oficial das estações.

Estamos na semana em que os cristãos, no mundo inteiro, celebram a ressurreição de Cristo, lembrando o drama de seu calvário. Os cantos de louvação a Deus são agora mais pungentes e ecoam no coração dos fieis, como uma verdadeira paixão, tonificando a fé, a alma, o espírito. Todas as energias se irmanam, para glorificação do Senhor.

Em nossa infância, eram mais fortes, mais densas, mais respeitadas, as tradições da Páscoa. A procissão da Fuga, a do Encontro e da Morte envolviam a cidade inteira, com seus cantos de louvor, suas imprecações, suas oferendas, e eram esperadas por todos nós. As famílias abriam suas janelas, enfeitavam suas casas, para ver passarem as procissões, num gesto de respeito, de inteira comunhão emocional. E o povo se comprimia a passos lentos, cantando, louvando, pedindo, mantendo viva a chama da fé, numa cidade que ainda tinha 180 mil habitantes, eu creio.

A procissão da Fuga saía, como ainda hoje sai, da igreja de Santo Antônio que era o santo padroeiro de nossa família, por inteira e total devoção de meu pai. A procissão do Encontro era a mais comovedora, a mais bela, a mais concorrida de todas. Nossa Senhora saía da igreja da Sé, como sai até hoje. Jesus saía da igreja de Santo Antônio. Eram duas procissões que se encontravam e se transformavam em uma só. O ponto de encontro era na esquina de nossa casa, onde a Rua dos Remédios se cruza com a Rua do Sol, na Praça de Santaninha.

Naquela na esquina era o encontro comovedor de Jesus Cristo, caído sob o peso da cruz pesada e nossa Senhora, linda, branca, com um lenço em suas mãos, em busca do filho. Ali a Verônica entoava um de seus cantos, como o fazia em outras paradas do calvário. Era uma voz aguda de soprano, triste e melancólica, pedindo a todos que olhassem aquele lenço, que ela desdobrava, e que trazia as faces de Jesus, com a coroa de espinhos e o sangue a manchá-la.

Era um canto triste, dentro da noite e, de nossas almas humanas, independente de sermos crianças. Ficávamos ali no muro, ao lado da família, presos ao encanto daqueles momentos que ficaram gravados em nossa memória.

Na sexta-feira da paixão, ninguém podia fazer nada. Falo ninguém, porque as famílias assim nos ensinavam e cobravam de nós. Crianças não podiam falar alto; não podiam brigar umas com as outras. Não podíamos ouvir rádios. Não podíamos dançar, fazer qualquer coisa mais alegre ou lúdica, porque Jesus estava com dor de cabeça.

Assim passávamos o dia. No carinho e no aconchego da família, quase de jejum, sem comer carne, sem comer muito, quase sem comer nada. Tudo era moderado. Até nossas tentadas travessuras eram postas de lado, por nossos pais, para serem pagas no dia seguinte, sábado de aleluia.

As rádios só tocavam músicas tristes, de cunho religioso, de sonora melancolia, para manter o clima de respeito ao sofrimento de Jesus. A televisão Difusora, única emissora da época, não funcionava naquele dia. Saía do ar o dia inteiro, sem qualquer programação, em respeito às tradições que o povo e a cidade cumpriam.

O cine Éden, o Roxi, o Rialto, até o Rival, exibiam os filmes da Paixão de Cristo. Sempre íamos ver esses filmes que pareciam ser os mesmos, a cada ano, mas que sempre nos emocionavam muito. Lembro-me das tantas vezes em que derramei lágrimas naquelas salas, assistindo a esses filmes, sob o impacto melancólico daqueles dias e daquelas cenas crueis.

Não havia, na cidade, nenhum local com festas para quem quer que fosse participar. Tudo era silêncio, respeito, sentimento de solidariedade, de contrição ao Senhor, por seu calvário e por sua ressurreição.

A procissão do Senhor morto saía do Carmo, e para lá tornava. Íamos lá, com papai e mamãe, visitar o Senhor, e outra vez nos emocionavámos. Era sempre no domingo, já depois da aleluia que o sábado trazia.

No sábado de aleluia, havia a cremação do judas. Aquele que, segundo os evangelistas, traiu Jesus, entregando-o aos Fariseus. Todos os bairros tinham o seu Judas para cremar. Na cidade, muitas ruas amanheciam assim, com esses homens feitos de pano, pendurados nos postes. Eles estavam ali, com seus testamentos, que eram a grande peça dramática que o povo criou, para transformar a cremação num ritual profano. Os testamentos eram obras de muito humor satírico. O morto deixando para os presentes, para pessoas que moravam em torno dali, seus pertences. Depois de lido o testamento, o Judas era descido do poste, massacrado a pauladas e depois cremado, diante de todos.

Havia uma tradição que falava no coelhinho da Páscoa. Mas não me lembro de ovos de Páscoa em nossa mesa, nem do hábito de nos presentearmos assim. O que havia era uma disciplina rigorosa a seguir e seguíamos, um clima de consternação que envolvia a cidade inteira, e envolvia a nossa alma, nos reunindo em torno do santuário, ponto de passagem obrigatória de todos nós, na entrada e na saída de casa, para pedir bênçãos a Santo Antônio.

Como é bom poder rever o passado, com os olhos postos no presente e os sonhos no futuro. Como é bom olhar a cidade agora, mudada pelo tempo, pelo peso das contradições contemporâneas, mas viva, rica, bela, em seu sentido de abrigar nossos referenciais e nossossonhos.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 
     

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