As fartas e densas chuvas de abril

chuvas de abrilGosto da chuva que vem com a noite e vai pela madrugada, até o amanhecer. Da varanda do apartamento, sentindo o frescor da brisa que umedece meu rosto, é possível ver a luz dos postes refletida no chão, no espelho do asfalto fino que reveste a avenida.

Como é fina e lisa a superfície do asfalto, os automóveis, os ônibus, as luzes da avenida são refletidos no chão escuro e frio, dentro da noite que avança, fria e plena de escuridão, apesar das luzes e das imagens que se multiplicam ante meus olhos contempladores.

As chuvas da semana passada me fizeram lembrar da infância, de episódios que já registrei em outras oportunidades, de chuvas torrenciais que duravam dias seguidos, quase sem estio, e nos impediam de ir à escola, e impeliam minha mãe a cobrir os espelhos da casa, e meu avô, a jogar café quente pra cima do telhado, pedindo a Santa Clara que parasse de chover.

Naquelas chuvas, quando envolviam a tarde, tomávamos banhos de bica, no quintal. Nelas mesmo, quando fazia estio, soltávamos barquinhos de papel nas águas que rolavam nas sarjetas. Esse prazer era tão grande e tão fluente como as próprias chuvas que ditavam o ritmo de nossas vidas. Há uma cidade viva dentro de mim, semelhante à cidade que vive fora de mim, no espelho do tempo, nas lembranças que afloram em nós, nos tempos de agora. Uma e outra cidade tem as mesmas ruas e quase ainda as mesmas casas onde, muitas vezes, fui feliz.

Na Rua da Paz, na Rua do Alecrim, na Rua dos Remédios, na Praça Deodoro, onde relembro nomes de amigos e recomponho faces e formas femininas, posso dizer que fui feliz. É bom poder olhar para a chuva que segue noite à dentro e ver além da chuva, dos pingos, da água empoçada, do vento fresco que molha meu rosto e entra pelo apartamento, sem pedir licença, e me leva para além de mim.

Para além de mim, porque além de mim é possível me encontrar e quase sempre me encontro. Agradeço a Deus por isso, por toda a beleza mutável que vive em torno de nós e envolve a nossa própria mutação, de forma permanente; por toda a energia que nos enlaça de forma harmônica, na ordem universal, fazendo sucederem-se os dias, os anos, as luas, os sóis, as estações e todas as nuances que permeiam as cores e as formas de tudo o que se move, na ordem cósmica.

Somos partículas dessa ordem universal, e precisamos compreender que todas as coisas que integram a natureza, guardam uma relação de interdependência entre si. Viver sem a percepção desse sistema, sem uma visão holística do mundo que integramos, é viver menos, limitando nossas potencialidades e possibilidades também, com nossos semelhantes. Como somos finitos, nossa energia transformadora deve estar além de nós, em nossa visão prospectiva, em nossos sonhos, em nossas esperanças, em nossas utopias mesmo, para nos perenizar pela eternidade.

Toda essa unidade energética que somos está centrada no passado. Sem passado não haveria presente. Sem presente não há futuro. E sem futuro não há eternidade. No entanto, além da varanda do apartamento, a chuva vai caindo sobre o asfalto, sobre o verde vegetal que cobre as dunas, mas que agora é escuridão. A cantiga dos sapos é monocórdia e parece não ter fim, dentro da noite finita.

A coruja branca, que costuma adejar com seu piado aterrador, recolheu o voo e se abrigou da chuva, longe dos meus olhos e de minha vontade. Queria vê-la, sob o peso flagrante da chuva, dos grossos pingos, longos como agulhas, forçando-a para o chão. Logo ela, a notívaga caçadora, de olhos aguçados e vibrantes asas. Mas a chuva impôs-lhe o recolhimento e ela obedeceu. A natureza tem leis que não podem ser contrariadas por outros integrantes da ordem natural. Não é difícil entender isso, sentindo o universo como um equilíbrio de forças que interagem entre si.

O dia de amanhã, provavelmente, terá outra face e isso o tornará único, diferente dos dias que o antecederam, por várias nuances: pelo fato natural de ser outro dia; pelo fato de que nós, os que podemos observar-lhe a unicidade, já não seremos os mesmos e, certamente, o veremos com outra escala de valores, com outra forma de ver e entender cada uma de suas peculiaridades naturais. Um dia sucede o outro e nenhum se repete, igual.

Cada um tem a sua própria gênese, a sua própria face, cores e formas que o distinguem e o marcam, do princípio ao fim. Assim somos nós, e assim é tudo o que é emoção e que de nós resulta, como manifestação explícita de nossa alma. A natureza nos oferece permanentes lições de vida e precisamos recolher.

No silêncio e na contemplação, esses ensinamentos mudos, quando recolhidos, podem transformar nossas vidas, levando-nos à mutação de ideias, sentimentos, crenças e atitudes, em busca de nosso crescimento interior, da felicidade que almejamos alcançar. Amar a cidade é sentir a transformação natural das coisas e aprender a mudar com elas. É preciso amar a cidade.

ivansarney@uol.com.br

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