O grande desafio das águas

 

 

Desafio das ÁguasSinto a chuva desabar sobre a cidade, durante a madrugada. Ela vem encontrar o dia, cobrindo-o de um cinzento, opaco, que vai oprimindo os operários, a caminho do trabalho.

Tenho a umidade da manhã no vidro embaçado do automóvel, nas lembranças de minhas andanças juvenis, a caminho da escola. Caminhos que me levaram ao Ateneu Teixeira Mendes, ao Liceu Maranhense e à Faculdade de Direito, à Rua do Sol.

As lembranças, de agora, também são opacas, pois cobrem de névoa o tempo, as faces de tantos professores, colegas de turma, salas de aulas, bedéis de classes e amores juvenis que ficaram enternecidos, nos encantos do passado. Tudo é meio coberto de névoa, agora, no espelho da chuva, nas faces cinzenta do tempo, que a tudo transforma. Mesmo a manhã, que já exibe sinais de estar despertada, com tudo o que trás de renovação e esperanças.

Fico torcendo para que o dia seja todo assim, cinzento, úmido, molhado, opaco, e possa me conduzir como nos outros tempos, para caminhar com os pés nas sarjetas, contra a correnteza das águas ligeiras, que tantas vezes levaram nossos barquinhos de papel. Mas não levaram somente eles. Levaram nossas tardes, nossa juventude, nossas esperanças, quase sempre, e não nos dávamos conta disso. Éramos jovens, tínhamos um mundo pela frente, a magia de viver desafios, inimagináveis, para nossos impulsos lúdicos. O futuro não tinha, para nós, a ameaça fria e pávida de agora.

Nem as drogas, nem a violência, nem o crescente isolamento humano nos ameaçavam. Nada nos ameaçava senão a fugacidade das horas que pareciam muito curtas, para nossa insaciável vontade de brincar, e viver a vida que sobejava em nossas veias.

As águas do inverno marcavam nossa vida, com o cinzento denso das nuvens que desciam pesadas sobre a cidade, às vezes, por dias e dias seguidos. Os trovões, os relâmpagos que oprimiam nossa liberdade, nos mantendo dentro de casa quase o dia todo, com os espelhos cobertos, com meu avô jogando café quente para cima do telhado, pedindo a Santa Clara que fizesse a chuva cessar.

Eu sempre me indagava, vendo a chuva troar pesada nos telhados, no turbilhão das enxurradas, descendo as ladeiras da Rua do Sol: para onde ia tanta água? E tinha medo das águas, do silêncio, das respostas que não vinham, e de tudo o que não era o aconchego de nossos pais e nosso lar. 

Na Rua do Alecrim, era sabido que aquelas águas desciam pela Boca de Lobo e iam encontrar o mar. Tudo, em verdade, ia e vai encontrar o mar, em nossa cidade. Por todos os lados, cercada de rios, de águas que avançam salgadas para engordar os igarapés. Tudo numa ilha vai ao encontro do mar, mesmo nossos sonhos, liquefeitos.

As águas desta manhã, também, vão encontrar o mar. Mas nesta manhã, as águas da chuva têm um sentido diferente para mim. Diferente daquele tempo em que pensávamos que a água era um recurso inesgotável em nosso planeta. Hoje, sabemos que um dos maiores desafios que o homem enfrentará, neste século, será o do abastecimento de água para a população. Problemas de desmatamento, assoreando rios; destruição de matas ciliares; poluição industrial dos mananciais, inclusive em suas nascentes; contaminação de lençóis freáticos; uso não racional dos recursos subterrâneos, com a perfuração indiscriminada de poços. Todos esses fatores constituem grave ameaça aos recursos hídricos do nosso planeta e à sobrevivência da espécie humana. Na água está, possivelmente, o maior desafio à vida, em nosso planeta.

É preocupante a situação das águas subterrâneas da Ilha de São Luís, pelo número sempre crescente de poços artesianos que têm sido perfurados, sem qualquer critério técnico e de forma indiscriminada, por quantos tenham interesse em fazê-lo. Essa forma indiscriminada de perfuração, em alguns lugares, já possibilitou que a água do mar penetrasse no lençol de água doce, tornando-a salobra e impossibilitando-a para uso potável, senão a altíssimo custo.

É uma das grandes ameaças que os nossos aquíferos estão sofrendo: possibilidade de salinização de suas águas. Por outro lado, com a perfuração indiscriminada e a construção de fossas cépticas inadequadas, contribuímos para a contaminação desses aquíferos, o que é mais grave, pois vai determinar a qualidade da água que as pessoas estão utilizando. Os conjuntos habitacionais populares representam bem essa situação de degradação ambiental.

Conhecendo a quantidade de águas que temos em nosso subterrâneo, poderemos dar um tratamento racional ao uso dessas águas e à proteção de sua qualidade. Usar racionalmente os nossos recursos naturais é uma forma de preservar a existência de nossa própria espécie animal e de todos os outros seres vivos do nosso planeta. Amar a cidade é proteger seus recursos naturais, dando ênfase às águas, que constituem base essencial para a existência da vida.

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