Maior é Deus, pequeno sou eu…

images (12)“Êh, maior é Deus / Êh, maior é Deus, pequeno sou eu / O que eu tenho, foi Deus que me deu / Na roda da capoeira, grande e pequeno sou eu…”   

Ouço a voz do mestre Pastinha, o grande mestre a Capoeira de Angola, que eu tive o prazer de entrevistar, em sua academia, no largo do Pelourinho, em Salvador, pouco antes dele se encantar para a eternidade. Eu o ouvi depor sobre sua vida e sua arte, falando de seus amigos, de seus alunos como Aberê, – o mesmo depoimento que mais tarde seria gravado em disco – e o vi ainda gingar, ao som dos atabaques que troavam, entre os sobrados antigos e as ladeiras, no velho Pelô.

Ali, comecei a amar a capoeira, a compreender sua origem, sua  história, seu trajeto para ser a arte marcial do Brasil, por ser a nossa verdadeira arte de defesa pessoal. Ela veio dos engenhos, das senzalas, onde a capoeira era a única arma de defesa dos negros, contra os ditames do seu senhor e dono. Ela que veio das entranhas, da mais íntima e imanente liberdade, para afirmar o anseio permanente do homem, de ser o senhor de seu próprio destino, de afirmar seu modo de pensar, de agir, de ser, com tudo aquilo que é traço definidor de sua cultura.

Em Salvador, conheci também o mestre Bimba, mestre Canjiquinha e mestre Traíra, que faziam a capoeira chamada Regional, mesclando alguns outros movimentos de ataque e defesa, recolhidos das brigas de ruas e das artes marciais.  

Nos dois estilos, o que vinga subjacente é a alma brasileira, miscigenada, irmanada com os sons, os ritmos, as melodias, as letras, a beleza plástica de um gingado corporal, mais puro, mais denso, mais belo que os movimentos do mais belo e apurado bailarino. Berimbau, caxixi, atabaque, agogô são seus instrumentos musicais. Todos plenos da mais pura percussão. Instrumentos artesanais, onde o homem exibe sua habilidade manual, sua natural  habilidade para a música.

O som tem toques especiais: Cavalaria, São Bento Grande, São Bento Pequeno, Volta do Mundo, Angola. Cada um tem o seu compasso, seu ritmo: mais lento, mais rápido, mais quente. E o som das canções, com  suas letras, vai envolvendo a alma dos capoeiristas, postos em círculo, para a grande roda. Quando tem “batizado” os mais novos, entram na roda pela primeira vez, para participar do jogo, da Volta do Mundo, e recebem suas primeiras bênçãos. E ali, ante os nossos olhos de espanto e nossa permanente inquietação, vão desfilando os mais belos golpes de ataque e defesa: Meia lua, Chapéu de Couro, Meia lua de compasso, Chapa, Aú, Benção, Rabo de Arraia. O arsenal do capoeirista é muito variado. Cada golpe é preciso e potente. Um único descuido pode significar um drástico acidente.

Mas dentro da roda, mas fora da gente, o que há é uma grande e bem ritmada festa: de canções, de ritmos, de melodias, de beleza plástica, como se fosse um grande balé, uma grande ópera popular, com os mais requintados toques de emoção.

Não tínhamos, no Maranhão, até por volta dos anos sessenta, uma tradição   explicita na prática da capoeira. Não tínhamos, até que aqui veio um grupo de Salvador, de nome “Viva a Bahia”, se não me engano. Com ele, vieram             capoeiristas e entre eles, o mestre “Sapo”, que o Dr. Alberto Tavares, nosso ilustre homem de ciências jurídicas e de letras, amante de esporte também, convidou para ficar aqui, ajudando-o a aqui se estabelecer.
“Sapo”, que bem fazia jús ao apelido que já trouxera de Salvador, era um tipo baixo, forte, de cara gorda, alegre e comunicativo. Ágil capoeirista, criado na malícia das mais tórridas rodas de Salvador, tinha a alma de um guerreiro astuto, sabendo ser condescendente e ser mau, quando precisava ser.

Foi ele o responsável para formação das gerações de capoeiristas que hoje representam o nosso Estado. Entre eles, podem ser destacados: Tarcinho, já falecido. Alô, que era um dos mais hábeis, mas que enveredou pelos caminhos do crime e acabou assassinado. Mestre “Patinho”, que hoje leciona no Laborarte, e é nome obrigatório em qualquer roda de capoeira que se faça aqui. “Patinho” seguiu a tradição dos capoeiristas mais autênticos e disciplinados, fazendo capoeira de Angola. Sei do seu amor pela capoeira, de sua luta para divulgá-la e da angústia dos mestres capoeiristas para tê-la como um esporte, dentro das escolas.

É muito importante que a capoeira venha alcançar esse status, saindo das ruas para atingir também as academias, as escolas, as universidades, de forma reconhecida e aprovada pela sociedade. Na luta contra as doenças do corpo de mente, todos os recursos esportivos são válidos, já que o esporte é um grande aliado da formação positiva do homem.

A capoeira está precisando de nossa ajuda para que possa alcançar o pódio hoje só ocupado pelo judô, a natação, o vôlei, o futsal. Penso que é importante que escrevamos um documento filosófico para fundamentar o seu ensino, prescrevendo-lhe um código de conduta, como existem nas artes marciais. Com isso, já conduziríamos seus novos praticantes ao estudo, à compreensão de que nossa força é coletiva; que a sociedade precisa de nossa bravura, para as causas eminentemente coletivas. Especialmente, para a importância da vida de cada um de nós, para a construção da paz, na humanidade. Toda a vida é preciosa e nenhuma vida pode ser substituída. Aprendi isso no karatê, onde me graduei faixa-preta, e isso vale para todos os esportes e para toda a conduta de nossa vida humana.

Gostaria muito de ver a capoeira nas universidades, nas escolas do primeiro, do segundo grau, com a consciência de todos os mestres, de que estamos preparando as gerações do futuro, de um futuro que esperamos possa trazer ao homem um novo direcionamento em seu destino, afastando-o das coisas sombrias e direcionando-o para a construção de uma sociedade luminosa, pela luz de paz que possa esparzir sobre a humanidade inteira. A capoeira é arte de homens e deve ser, como todas as outras artes de defesa pessoal, um instrumento em favor da vida, em favor do crescimento moral, espiritual, intelectual do homem, conduzindo-o para a prática do amor, sob suas mais diversas formas e levando-o a alcançar sua própria plenitude.

Esta crônica é uma homenagem à capoeira, a todos os mestres, a todos os discípulos, que eu quero simbolizar nas pessoas do Mestre “Sapo” – de quem tive o privilégio de ser amigo –  que já se encantou para a eternidade, vítima de um grotesco acidente automobilístico, e do mestre “Patinho”, uma prata de nossa casa, uma lenda viva da história da capoeira, no Maranhão. Amar a cidade é realçar sua cultura sua gente.  

 

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